CARTA DE BRAGA – “da tirania e da palavra” por António Oliveira

As classes governantes têm nas suas mãos as tropas, o dinheiro, a escola, a religião, a imprensa. Nas escolas, atiçam nas crianças o patriotismo, com as histórias que descrevem o seu povo como o melhor de todos os povos e sempre justo; atiçam nos adultos esse mesmo sentimento por meio de espectáculos, solenidades, monumentos, de uma imprensa mentirosa; acima de tudo, atiçam o patriotismo praticando toda a espécie de injustiças e brutalidades contra outros povos, despertam neles a hostilidade contra o seu próprio povo e usam depois essa hostilidade para excitar a hostilidade no próprio povo’.

Este texto pertence a um pequeno conjunto de reflexões sobre uma vida austera e simples da humanidade em geral, escrito por Lev Tolstoi em 1900, sob o título ‘Patriotismo e Governo’ e tanto serve para lá como para o lado de cá. 

Um pouco mais adiante, mas ainda dentro do mesmo conjunto de reflexões, Tolstoi adianta ‘Um governo no sentido mais amplo, que inclui em si os capitalistas e a imprensa, não é mais do que uma organização em que a maior parte das pessoas fica sob o poder de uma pequena parte; e essa mesma parte menor submete-se ao poder de outra parte ainda mais pequena e esta a outra ainda mais pequena, etc., chegando finalmente a um pequeno número de pessoas ou a uma só pessoa, que por meio da violência armada obtém o poder sobre todas as outras’.

Cem anos depois, em 2000 e na obra ‘A modernidade líquida’, Zygmunt Bauman traz esta questão para os dias de hoje, pois tal como lá, os círculos dos governos incluem capitalistas e imprensa, por também haver partes importantes das populações dependentes de outras, diminutas mas poderosas  porque, ‘Todas as medidas tomadas em nome do resgate da economia se convertem, como se tocadas por uma varinha mágica, em medidas que sevem para enriquecer os ricos e empobrecer os pobres’ e, mais adiante, ‘O perigo mais tangível para o que chama de cultura pública está na política do medo cotidiano. O espectro arrepiante e apavorante das ruas inseguras, mantém as pessoas longe dos espaços públicos e as afasta da busca da arte e das habilidades necessárias para compartilhar a vida pública’.

Em 1975, Cioran, nascido na Roménia e filho de um padre ortodoxo, mas a viver em Paris desde 1946, escreveu um outro conjunto de reflexões com o título ‘A Rússia e o vírus da liberdade’, até porque, afirma, ‘embora vomite os tiranos, nem por isso deixo de reconhecer que são eles a fazer a trama da história’ e, sem eles nem sequer seríamos capazes de conceber a ideia ou a existência de um império. 

E além de Napoleão e Gengis Khan, pela relação directa com a qualidade da nação, não deixa de apontar Carlos Magno, Frederico II de Hohenstaufen, Carlos V e Hitler, por terem tentado, cada um a seu modo, realizar a ideia de um império universal, tendo fracassado com mais ou menos sorte. 

Mas Cioran acrescenta, talvez prevendo o que hoje acontece por estes lados, ‘O Ocidente, onde tal ideia já só suscita ironia ou mal-estar, vive hoje na vergonha das suas conquistas; mas curiosamente, é no preciso momento em que se retrai sobre si próprio, que as suas fórmulas triunfam e se expandem. O Ocidente ganha, perdendo-se’. E não deixa de acrescentar que, no limite, é possível governar sem crimes, mas em caso nenhum é possível governar sem injustiças e, estes tempos mostram isso e com fartura. 

Aliás, um outro nome grande da literatura, Fiódor Dostoiévski, já em 1861, também não se esquiva a tratar este tema no livro ‘Recordações da casa dos mortos’, ‘O pior é que a prática abominável do tirano, se traslada aos povos com uma velocidade vertiginosa e com os piores resultados, pois também se transforma em hábito. O tirano reconhece a sua dupla moral, o mal que faz aos outros, mas que o beneficia a ele’.

Talvez por isto tudo e pelo que tem acontecido nos últimos tempos, do –pangolim ao covid, às máscaras, às vacinas racionadas para meio mundo, ao aumento brutal do combustíveis e dos bens de primeira necessidade e, agora, do aparecimento dos mísseis, das destruições, das vítimas, dos refugiados, dos trumpas, dos boçalnaros e demais palermas, das mentiras pagas ou impostas– sinto-me já, no que imagino poderá vir a ser, a véspera do Apocalipse!

E, até por isso, volto a Tolstoi, mas à comunicação que fez no ‘Congresso  da Paz em Estocolmo’ em 1909, ‘A guerra, ou seja, aquilo que em todos os povos do mundo, milhões e milhões de pessoas, colocam sem nenhum controlo à disposição de alguns -poucos- homens, e por vezes de um único homem, não apenas biliões de rublos, de táleres, de francos, de ienes, que representam uma grande parte das economias do seu trabalho, mas também a si próprios, às suas vidas… Eles têm nas mãos, biliões em dinheiro, milhões de tropas obedientes e, nós temos nas mãos apenas uma coisa, mas que é o meio mais poderoso do mundo – a Verdade. E por isso, por mais insignificantes que possam parecer as nossas forças, a nossa vitória é tão certa como a vitória de luz do sol nascente sobre a escuridão da noite’.

Mas, há já muitos séculos, mais de 400 anos antes de Cristo, a propósito da guerra entre Atenas e Esparta, Tucídides garantia que a função da política era evitar que o ódio fosse eterno. Anos depois, Platão referindo a afirmação de Tucídides, ensinava aos seus discípulos, que a república ideal só existia em palavras. 

Bem me parece que, a confirmar tudo isto, basta pensar agora em Mariupol como outra cidade mártir, onde bairros inteiros foram transformados em escombros, –da mesma forma que em seu tempo e noutras guerras, foram Sarajevo, Grozni ou Alepo– para avisar tanto os ucranianos como o resto do mundo, que o ‘dono da guerra’ parece estar disposto a tudo.

E apesar de Mariupol e daquela afirmação de Platão, as palavras talvez possam vir a ser, mesmo hoje –dia 20 e Domingo– a solução única para pôr fim a este conflito, se ouvidas e acatadas tanto por um lado como pelo outro e, mais ainda pelos que, sentados a oriente, assistem a tudo à espera de saber quem será o ‘vencedor’, porque a perder, já perdemos todos.

António M. Oliveira

Não respeito as normas que o Acordo Ortográfico me quer impor

 

 

2 Comments

  1. Soberbo, Amigo!!SOBERBO! Já li, encantada e agora. vou partilhar com outros adeptos teus :)Um enorme abraço!

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